sábado, setembro 13, 2003

Vai e vem, mas fica uma grande obra

Para o meu Querido amigo, das cinzas do meu outro blogue a Aba de Heisenberg:

O meu conterrâneo João César Monteiro (JCM) terminou a sua carreira com mais uma grande obra: Vai e vem. JCM tinha um estilo muito próprio de fazer cinema. Como infelizmente já vem sendo habitual entre nós Portugueses, esse estilo é muito mais apreciado além fronteiras do que em Portugal. Alguns dos anos que passei fora de Portugal fiquei espantado com a expectativa e entusiasmo que criavam as estreias dos filmes de JCM entre alguns dos meus jovens colegas belgas, italianos, alemães e franceses.
JCM pode ser visto de várias maneiras, uma delas é olhando para a sua obra como um cancioneiro moderno de cantigas de escárnio e mal dizer. Está lá tudo: a crítica mordaz às instituições, uma linguagem literária com perfume a rosas que se cruza com um obsceno cavalheiresco, a dança desajeitada dos trovadores, os provérbios populares e as frases burlescas proferidas sempre num tom da maior seriedade. Podemos também olhar para o outro lado de JCM, o da loucura. Quem vê os seus filmes fica com a sensação que JCM viveu sempre de braço dado com a loucura, mas ao mesmo tempo controlava-a e dela fazia proveito. Frequentemente figuravam os desvarios traduzidos em danças de um doce patético. Estava sempre presente uma sexualidade assumidamente refinada e obscena e que roçava por vezes o limite da legislação em vigor. É certo que essa sexualidade era machista, mas era a do seu tempo.
Relembro algumas das deliciosas passagens dos seus filmes:

"Nem a mais, nem a menos, peitinhos de rola!" exclamava João de Deus enquanto espreitava pelo buraco da fechadura uma jovem desnudada que tomava um duche (Recordações da casa amarela).

"Toma lá 10 dólares, mas não gastes tudo em vinho!" dizia em tom de aviso a freira para João de Deus. Este aceita e ao sair do convento cruza-se com o jardineiro. Oferece-lhe os 10 dólares e diz: "Toma lá 10 dólares, mas não gastes tudo em freiras!" (Bodas de Deus)

"Esse poema é do camarada Saramago?" pergunta a jovem comunista a João Vuvu. Ao que este responde: "Não, é do cavalheiro Luís de Camões..." (Vai e vem)

Aquele olho final que reflecte um jardim acompanhado do requiem final diz-nos muita coisa sobre o percurso de JCM. Diz-nos sobretudo que JCM não desapareceu sem deixar rasto. Desapareceu, mas deixou um rasto muito interessante que provavelmente só será devidamente apreciado no nosso país num futuro mais distante.

Espero que não ergam nenhuma estátua àquele que foi provavelmente o Figueirense que mais extravasou o seu talento para além dos limites da cidade e do próprio país. Digo isto porque depois dos últimos quatro anos de desvario camarário que levaram a Figueira da Foz a ser uma das cidades mais endividadas do país, até uma estátua em honra de Baden Powell (o fundador dos escuteiros) foi edificada! A melhor homenagem que se pode fazer a JCM é ver os seus filmes e criticá-los, independentemente de se gostar ou não do seu estilo.

"Queriam...telenovelas?" (João César Monteiro no dia da estreia de Branca de Neve)

Sem comentários: