Passei quatro anos da minha vida em França, em Estrasburgo, no bairro de Cronenburg, o bairro que dá nome à famosa cerveja Kronenburg com "K". No bairro de Cronenburg havia uma zona relativamente calma, onde eu morava e onde "apenas" vi arder um carro durante esses quatro anos. Foi na minha rua, podia ser o meu carro, que comprei a custo com os tostões que poupei da minha bolsa. Depois Cronenburg tinha um sector mais pesado, o sector dos guetos de habitação social construídos nos anos 60 com a melhor das intenções, mas que só serviram para juntar pessoas com os mesmos problemas, tendo contribuído para amplificar aquilo que de pior existe na sociedade, e em particular entre os grupos imigrantes. Nesse sector chamado ironicamente de Cité Nucleaire, onde se situava o CNRS, o meu local de trabalho, havia diariamente ocorrências violentas, que poderiam ser muito violentas de quando em vez. Lembro-me de um velhinho barbaramente atropelado por um BMW descapotável conduzido por jovens violentos, lembro-me de um colega que foi espancado quase até à morte por ter saído do seu carro para afastar um caixote de lixo em chamas que lhe barrava a estrada e lembro-me do carro que foi lançado em chamas contra a loja de atendimento da assistência social. No Natal e na Passagem de Ano era certo que se queimavam por ali para cima de 20 carros de pessoas humildes que juntavam as suas economias de anos para comprar uma bagnole em segunda mão. Durante o resto do ano ardiam regularmente uns 5 a 10 carros por mês. Poderia encher o blogue até lá baixo, até ao último post, de historiazinhas de violência da cité e das minhas experiências pessoais de violência verbal e física em que me vi envolvido. No meu caso, os motivos dessas cenas de violência foram causas tão importantes como o comprimento dos meus cabelos, uma rapariga cuspida e agredida em plena Universidade e o meu casaco de Inverno. Neste último caso tive muita sorte, mais sorte que os que me tentaram agredir e muita sorte de não ir para o hospital espancado.
Estes são os motivos típicos da violência das cités em França, não é violência para sacar dinheiro para sobreviver ou para alimentar o vício, é uma busca de confronto bastante reaccionário e intolerante que não tem nada de revolucionário. Quem vê nisto algo de revolucionário aconselho a leitura do livro "La gauche contre le peuple" do jornalista de esquerda Hervé Algalarrondo. Na verdade, as cités são o espaço mais fascista, intolerante, machista e xenófobo que conheci, sendo governadas por pequenos tiranetes entre os 12 e os 17 anos.
Obviamente, não me espanta o que está a acontecer em França, tal como não me espantou o resultado de Le Pen nas últimas presidenciais francesas. Aliás este surto de violência não é novidade nenhuma, já aconteceu em 1992, pouco depois dos acontecimentos de Los Angeles. Os guetos de habitação social povoados de imigrantes continuam lá. As referências culturais de origem paterna continuam a ser fantasiadas pela nova geração da pior maneira e deturpada por algumas organizações religiosas fanáticas instaladas em França. A origem e a especificidade dos povos imigrantes continuam a não ser tomadas em conta na política de imigração. E sobretudo as acções políticas tanto da esquerda (mais social) e da direita (mais policial) são executadas com muita distância, são muito poucos os que se dão ao trabalho de ir às cités. E digo-o com conhecimento de causa. Fiz parte de uma coligação de esquerda para as municipais francesas com ecologistas e ATTAC e na hora de ir às cités para participar em conselhos de política de proximidade, não aparecia lá ninguém. Só os funcionários da câmara que eram obrigados a isso e os moradores que ainda não se tinham cansado do autismo. Por outro lado, quando a direita conquistou a câmara de Estrasburgo, aumentou o policiamento e em apenas 6 meses a violência aumentou mais de 200%...
A solução não é nada simples, mas para transformar os tiranetes em putos normais, com as pancadas e os delírios próprios da idade, se calhar a solução anda entre algo como: acabar com as cités e misturar as populações; envolver as populações nas decisões políticas e orçamentais dos bairros; apostar na polícia de proximidade para impedir a criação de zonas de democracia zero controladas por tiranetes de bairro.
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