“No Princípio Estava o Mar” do meu conterrâneo figueirense Gonçalo Cadilhe é uma recolha de sublimes e deliciosas crónicas enviadas pelo autor à revista Surf Portugal, durante uma série de viagens à volta do mundo. As crónicas valem tanto pelo seu carácter poético como pelos apontamentos mais críticos. Gostei do entusiasmo com que o Gonçalo descreve as noites em que vai para a cama com o sal no corpo, gostei da forma como descreve as pessoas dos países por onde passa, sem rancores, sem ingenuidade, sem ilusões, gosto da sua determinação em percorrer milhares de quilómetros para curtir meia dúzia de ondas e gosto do seu desprezo pelo materialismo, uma raridade nos dias de hoje. De facto, não precisamos de muitas coisas (leia-se possessões) para desfrutarmos do que há de bom neste planeta.
Entre as passagens mais críticas do livro destaco a passagem em que o Gonçalo descreve El Salvador: “El Salvador sofreu durante os anos 80 uma das piores guerras civis do século XX. Os acordos de paz de 1992 não resolveram o problema da violência. As armas ficaram nas mãos da população enquanto a falta de horizontes económicos, o desemprego e a epidemia de crack fizeram o resto: a violência política transmutou-se em violência aleatória, delinquência e “gangsterismo”. Hoje, El Salvador é um dos países mais inseguros do continente.”
Um povo que não merece o mar que tem
As críticas do Gonçalo ao nosso país são muito certeiras, sobretudo as que se referem à nossa difícil relação com o mar, quando enumera os variadíssimos atentados à nossa orla costeira, quando lamenta uma gastronomia muito desconfiada do peixe, quando refere a nossa indiferença sobre variadíssimos produtos do mar, como a flor de sal e quando relembra a nossa azelhice e as nossas fobias do mar.
Enquanto lia estas críticas dei por mim a pensar: quantos portugueses sabem nadar? Certamente menos do que os cidadãos de países europeus que não têm mar, como a Rep. Checa, ou países cuja orla costeira é reduzida, como a Bélgica. Quando joguei basquete em equipas figueirenses, um dos insultos que ouvíamos da bancada assim que jogávamos nalguma localidade a mais de 20 km do mar, era: peixeiros! O mais triste, nem era ser insultado, era sim o facto daquelas pessoas serem de tal modo avessas ao mar, que nem percebiam que para nós ser peixeiro era motivo de orgulho.
As crónicas dirigidas ao nosso materialismo kitsch também valem bem a pena a sua leitura. A fúria dos todo-terreno em plena cidade, a fúria dos empréstimos para comprar bugiganga electrodoméstica, a fúria das roupas de marca, etc., está lá tudo.
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