segunda-feira, junho 23, 2008

A má matemática na aprovação do Tratado de Lisboa

A minha crónica deste fim-de-semana no portal Esquerda.net:

Nunca passaria pela cabeça de um bom matemático, um bom físico ou um bom profissional de uma outra área qualquer com sólidos conhecimentos de matemática, propor um esquema de aprovação de tratados europeus, como o esquema em vigor. É um esquema ingénuo do ponto de vista matemático e muito pouco democrático, vejamos porquê.

No actual processo de aprovação do Tratado Simplificado (ou de Lisboa), o texto é submetido a referendos independentes em cada país da União Europeia. Neste esquema um voto NÃO num dos países da UE é suficiente para anular o efeito de todos os SIM obtidos nos restantes países. O NÃO funciona neste caso como um elemento absorvente, tal como o zero na multiplicação. Analisemos três cenários diferentes para a aprovação do Tratado.

Cenário 1 - Vamos determinar a probabilidade um tratado europeu ser aprovado por dois países fictícios.

Na República da Escócia a probabilidade de NÃO e SIM vencerem é de 50% (50/100 ou 1/2) e no Pontificado de Varsóvia a probabilidade de NÃO e SIM vencerem é igualmente de 50%. Existem 4 resultados possíveis: SIM+SIM, SIM+NÃO, NÃO+SIM e NÃO+NÃO. Todos com a mesma probabilidade: 25%. Como o NÃO é elemento absorvente, a probabilidade do tratado ser aprovado é apenas de 25%, correspondente à probabilidade de obtenção do resultado SIM+SIM. A operação que realizamos para obter a probabilidade de aprovação de 25% é a multiplicação simples da probabilidade do SIM vencer em cada país, ou seja: (1/2)*(1/2)=1/4=0,25 -> 25%

Cenário 2 - Vejamos agora a probabilidade de aprovação de um tratado europeu por 27 países.

Admitindo de novo uma probabilidade de 50% (50/100 ou 1/2) de o SIM ou o NÃO vencerem em cada país, obtemos 1/2 multiplicado por si próprio 27 vezes! Ora (1/2)27=0,0000000075 -> 0,00000075%. Isto é, a probabilidade de aprovação do tratado é insignificante!

Cenário 3- A coisa não é assim tão simples, porque os tratados são definidos nas cimeiras de chefes de estado onde cada um opta por um tratado que reúna um amplo consenso no respectivo país, englobando o máximo de formações políticas. Por esta razão, em geral a probabilidade de um tratado obter um SIM em cada país é elevada. Pode ser superior a 90% no caso de um forte consenso nacional. No entanto, vejamos a probabilidade de um tratado ser aprovado num contexto de fortes consensos nacionais.

Admitindo uma probabilidade de 90% (90/100) de o SIM vencer em cada um dos países, a probabilidade do tratado ser aprovado em toda a UE é de (90/100)27 = 0,058 -> 5,8%.

Mas se a probabilidade do SIM vencer em cada país for de 97% (97/100) obtemos: (97/100)27= 0,439 -> 43,9% de probabilidade de aprovação... Só quando a probabilidade de o SIM vencer em cada país for superior a 98% é que a probabilidade de aprovação sobe acima dos 50%: (98/100)27= 0,580 -> 58,0%

A conclusão destes cálculos é que o actual sistema de aprovação de referendos torna quase impossível a vitória do SIM. Do ponto de vista formal temos a ilusão de estar perante um processo inteiramente democrático, onde todos os povos são chamados a votar, mas do ponto de vista matemático estamos a desafiar fortemente a matemática, estamos a querer ganhar no totoloto à primeira tentativa. Obviamente, isto é válido para a aprovação de tratados, mas seria igualmente válido para qualquer outro assunto sujeito a referendo. Imaginem que um dia seria possível submeter a referendo a aprovação de um salário mínimo europeu. Seria uma proposta condenada à morte logo à partida no esquema de aprovação em vigor.

A solução mais racional do ponto de vista matemático e de longe mais democrática seria organizar um referendo europeu no mesmo dia em que os votos de todos os países seriam somados conjuntamente - essa soma poderia obedecer a um factor de correcção ou de normalização para os países mais populosos não saírem beneficiados. No entanto, actualmente esta solução não é ainda possível dado que a maior parte das constituições nacionais não permite este tipo de processo.

Dado que este é um portal que dá voz à esquerda e apesar das esquerdas europeias estarem divididas entre um campo maioritário adepto do SIM (verdes, partidos radicais, partidos socialistas, liberais de esquerda, etc.) e um minoritário adepto do NÃO (partidos comunistas, correntes socialistas republicanas e outras esquerdas alternativas como o BE), uma causa comum deveria mobilizar toda a esquerda independentemente da posição política sobre a questão a referendo: o progresso da democracia europeia. Se hoje em dia as constituições nacionais não permitem a realização de referendos pan-europeus, será preciso mudá-las!

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