quinta-feira, setembro 08, 2005

Iraque: a utilização propagandística da Ilíada

A Ilíada tem sido indirectamente utilizada (felizmente sem sucesso) como elemento justificativo da intervenção no Iraque. A carga histórica de um épico milenar que descreve a guerra entre Gregos e Troianos serve como aparente exemplo de sabedoria igualmente milenar que justifica o presente. E se na Ilíada se fazia a guerra por caprichos dos nobres, então hoje pode justificar-se a guerra pelo petróleo à pala da democracia. Para além do mais o autor tem a virtude de ser absolutamente imparcial relativamente aos tempos que correm. No entanto, os fracos hábitos de leitura e o desinteresse dos portugueses por este tipo de obras inviabilizaram o sucesso desta estratégia. Nem a recente edição de uma nova tradução, nem a estreia do filme Tróia (que muitos ignoram a relação com a Ilíada) mudaram o desinteresse pela obra. Consciente ou não do facto, apenas esta entrada do Blasfémias do José Pedro Lopes Nunes aborda em parte a Ilíada pelo mesmo ângulo. Podemos ler:

"A guerra, no tempo de Homero, parece ter sido algo de particularmente importante, na perspectiva do autor, que lhe consagrou, em larga medida, a obra em análise. Passados bastantes anos, o que podemos concluir é que a guerra se mantém tema actual, pela sua continuada importância."

O meu domínio são as ciências, por isso abstenho-me da interpretação literária. No entanto, lembro que a importância de Homero se deve sobretudo à Odisseia, basta lembrar as obras importantes inspiradas no carácter desta obra: Eneida, Divina Comédia, Lusíadas, etc. A Ilíada, apesar do seu interesse é claramente uma obra menor comparada com a Odisseia.
Os meus reparos a esta visão neo-bélica da Ilíada são sobretudo de carácter científico, fazendo uso da excelente obra de Desmond Morris, "O Macaco Nu":

- A guerra, no sentido da eliminação física do adversário, é uma situação excepcional dentro da espécie humana, não é normal. O que não é sinónimo de afirmar que o ser humano é pacifista. Os humanos, como quase todas as outras espécies que tiveram sucesso, não têm por hábito matar membros da mesma espécie. Nas palavras do zoólogo Desmond Morris em caso de conflito: "Qualquer animal quer a derrota, não o assassínio" (pag. 184, Europa-América, ed. 1997). Ora, a Ilíada é a descrição de uma guerra em que a derrota não basta e onde o assassínio é enaltecido como forma última da honra individual. A importância da guerra deve-se apenas ao seu carácter excepcional. A derrota é muito mais importante e para se obter uma derrota a guerra não é condição necessária, nem suficiente.

- No conflito mais básico e mais primário entre membros da mesma espécie existem mecanismos "diplomáticos" gestuais e vocais de reconhecimento rápido do vencedor e do vencido, sem que o vencedor tenha necessidade de matar o vencido (cap. V - "A agressão", idem). A guerra "aconteceu por causa da associação viciosa do ataque à distância (...) os indivíduos deixaram de ver o objectivo inicial. Actualmente, quase não há possibilidade de reagir perante o [mecanismo diplomático de] apaziguamento directo" (pag. 185, idem). A guerra que descreve a Ilíada nada tem a ver com a guerra dos tempos modernos, em que o contacto entre agressor e agredido em grande parte dos casos é nulo. O agressor não assiste ao sofrimento, nem ao sangue, nem à morte do adversário.

Por estas razões, é um exercício fraco e perigoso invocar a Ilíada para justificar parcialmente as guerras actuais, como temos lido em recentes artigos de conhecidos cronistas. Desmond Morris vai mais longe em relação à perigosidade da guerra: "Esta infeliz evolução pode acabar por ser a nossa ruína e conduzir à rápida extinção da nossa espécie" (pag. 185, idem).
Numa visão mais actual sobre os temas da perigosidade da guerra e da "extinção da espécie" chamo a atenção dos meus caros leitores para o artigo "Apocalypse Soon" pelo perito de armas nucleares Robert McNamara na revista Foreign Policy de Maio e Junho de 2005. McNamara explica preto no branco porque é que estamos actualmente a brincar com o fogo ao guardar um arsenal nuclear projectado para a Guerra Fria num tempo em que o mundo é mais complexo e em que houve uma redistribuição aliados e inimigos.

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